Em Cena:
A Sala Eleitoral e Sua Saga Judicial Inédita

por Madame Robespierre
(pseud.)

 

"A justiça, a justiça sozinha, é a base da constituição. Qualquer violação da justiça, qualquer corrupção da justiça, é uma usurpação, um crime que atenta contra a liberdade do povo." Maximilien Robespierre

01 Setembro 2024

 

Cenário: O pano sobe

Bem-vindos, queridos espectadores, a uma história onde a realidade parece superar a ficção, um drama que se desenrola no palco da política venezuelana. Estamos no dia 28 de julho de 2024 na Venezuela, dia de eleições presidenciais envoltas em um turbilhão de acusações de fraude e um suposto ciberataque vindo da Macedônia do Norte dirigido contra o Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Um dia que marcará o início de uma das sagas judiciais mais inusitadas da história moderna.

A primeira cena se abre com um anúncio impactante: Nicolás Maduro é declarado vencedor durante a emissão do primeiro boletim do CNE, apesar de ainda faltarem 20% dos votos a serem contados, e é proclamado presidente eleito no dia seguinte sem que fosse publicado nenhum dado eleitoral que respaldasse sua suposta vitória. Mas, como se a trama não pudesse ser mais intrigante, o próprio Maduro, esse pseudo proclamado e teórico vencedor, decidiu no dia 31 de julho, com grande teatralidade, apresentar um recurso contencioso eleitoral à Sala Eleitoral do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ). Qual o motivo? Defender a Constituição, a Lei Orgânica dos Processos Eleitorais (LOPRE) e a Lei Orgânica do Tribunal Supremo de Justiça (LOTSJ), alegando que sua inverossímil vitória eleitoral havia sido alvo de um ataque sem precedentes e que se estava gestando um golpe de Estado disfarçado de eleições.

E que rapidez da Sala Eleitoral! Em menos de 24 horas, a decisão n.º 25 é divulgada, admitindo esse misterioso recurso ao qual ninguém teve acesso e convocando todos os candidatos presidenciais a comparecerem à sua sede no dia 2 de agosto. Nove deles compareceram, mas Edmundo González Urrutia, que foi considerado vencedor pelas massas, se recusou a comparecer, argumentando que sua ausência era um ato de resistência para proteger a vontade do povo.

O pano da segunda cena cai no mesmo dia da audiência, quando a Sala Eleitoral, com a decisão n.º 26 em mãos, ordena ao CNE entregar, em três dias úteis, todas as atas relacionadas às eleições. E para manter o espetáculo vivo, a Sala comprometeu-se a trabalhar 24 horas por dia, todos os dias, até resolver as dúvidas relacionadas ao processo eleitoral.

A trama avança para o dia 5 de agosto, quando o CNE, obediente, entrega a documentação solicitada à Sala Eleitoral, como informado pela magistrada Caryslia Beatriz Rodríguez em um ato transmitido pela televisão nacional, uma aparição digna de um grande final de ato. Mas, é claro, a peça deve continuar, e a decisão n.º 27 inicia uma perícia exaustiva do material entregue, a ser realizada dentro de um prazo de 15 dias, prorrogáveis. Tal é a eficiência quando o galo canta!

Não contentes com o que já foi apresentado, no dia 6 de agosto, a Sala Eleitoral, por meio da decisão n.º 28, exige a entrega de todos os documentos eleitorais em posse dos partidos políticos e candidatos. E, como em toda boa peça, o clímax chega no dia 22 de agosto, quando a sentença final da Sala Eleitoral do TSJ é divulgada, encerrando, por enquanto, este fascinante ato da grande saga judicial venezuelana.

Agora que a montagem está concluída, é momento de começar esta função.

 

Primeiro Ato: A Incompetência da Sala Eleitoral

E assim, mergulhamos no fascinante mundo da jurisprudência venezuelana! Nesta primeira cena, o pano se levanta para revelar o brilhante artigo 27, inciso primeiro, da LOTSJ. Este artigo, em sua infinita sabedoria, nos instrui sobre como interpor recursos contenciosos eleitorais. Acontece que, segundo este glorioso texto legal, tais recursos devem ser dirigidos exclusivamente contra os atos, ações e omissões dos órgãos do Poder Eleitoral.

Para ilustrar as atividades anteriores de nossa muito estimada Sala Eleitoral, observemos estes encantadores exemplos de como os recursos contenciosos eleitorais têm sido utilizados para fins políticos na Venezuela.

No primeiro caso, nos encontramos em dezembro de 2015. O palco está pronto para as eleições parlamentares, onde a Mesa da Unidade Democrática (MUD) parece ter a vitória garantida. Mas, oh surpresa! O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) apresenta um recurso à Sala Eleitoral do TSJ, alegando irregularidades em Amazonas, como a compra de votos. Com um dramatismo digno de um thriller, o TSJ emite uma medida cautelar que suspende a proclamação dos deputados eleitos naquele estado, deixando a MUD sem sua maioria qualificada. Um ato de pura ironia judicial, que o constitucionalista Brewer Carías, um dos principais críticos da nossa trama, descreve como um “desconhecimento judicial da eleição popular” (veja sua brilhante análise em Brewer Carías).

No segundo caso, nos trasladamos para novembro de 2021, com uma nova reviravolta na trama: as eleições regionais e municipais. Freddy Superlano, da MUD, impugna os resultados da governadoria em Barinas, alegando irregularidades. Embora o CNE o tenha inicialmente proclamado vencedor das eleições, a Sala Eleitoral do TSJ interveio com uma sentença que ordenou a repetição das eleições. A razão? Uma inabilitação administrativa de Superlano, que muitos viram como uma usurpação de funções da Sala Eleitoral sobre o CNE, o verdadeiro titereiro do poder eleitoral na Venezuela (para mais detalhes, consulte as crônicas do El País e o Observatório Eleitoral Venezolano).

Assim é, amigos! A cena está montada, e o espetáculo do contencioso eleitoral continua com reviravoltas inesperadas e uma brilhante interpretação do teatro judicial.

No grande teatro da justiça venezuelana, a Sala Eleitoral do TSJ volta a ocupar o palco principal depois que o presidente "eleito" Nicolás Maduro apresentou, no dia 31 de julho de 2024, seu recurso para ? revisar ? as eleições. Assim, o debate sobre a competência e o alcance desta honrosa sala volta a capturar as luzes do espetáculo.

Lembramos que o recurso contencioso eleitoral é um dispositivo legal destinado a questionar os atos, decisões e omissões do CNE. Um instrumento para ajustar o curso do barco eleitoral quando o timão se desvia, conforme estipulado no artigo 213 da LOPRE. Sua missão: garantir que os processos eleitorais naveguem em águas de justiça, evitando qualquer tempestade que possa ofuscar a esplêndida jornada democrática.

Mas eis o giro inesperado: em vez de usar esta instância judicial para questionar a atuação do CNE, Maduro, que já havia sido declarado vencedor da contenda, decide recorrer a esta mesma instância para verificar os resultados que lhe conferiram sua vitória falaciosa, sem que seu recurso tenha impugnado qualquer ato específico do CNE nem alegado prejuízo algum.

Em suma, o que Maduro buscava com sua atuação perante a Sala Eleitoral era que esta lhe conferisse uma aura de legitimidade a resultados que, em essência, permanecem no reino da imaginação. É fascinante como Maduro parece pensar que a Sala Eleitoral poderia conferir legitimidade a uma fraude tão evidente, o que evidencia uma opinião profundamente desalentadora sobre a perspicácia do povo venezuelano e sobre a astúcia da comunidade internacional.

Continuando com essa intrincada trama de justiça, no dia 15 de agosto de 2024, quase duas semanas depois da audaciosa incursão de Nicolás Maduro na cena judicial, o jornalista Vladimir Villegas realizou uma importante entrevista com o Professor Tulio Álvarez, chefe da Cátedra de Direitos Constitucionais da Universidade Central da Venezuela e da Universidade Católica Andrés Bello. Álvarez, com a graça de um dramaturgo experiente, desvendou as complexidades jurídicas, esclarecendo que a Sala Eleitoral do TSJ, qual estrela cadente, não tem papel algum nos atos de totalização, escrutínio e proclamação que são atos de exclusiva competência do CNE.

Esse argumento, que foi ratificado por jurisprudência vinculante da Sala Constitucional, como enfatiza o próprio Álvarez, baseia-se no sacrossanto princípio da separação dos poderes, que exige manter o CNE no centro do palco eleitoral, longe da intrusão da Sala Eleitoral.

Assim, de facto, fomos testemunhas de uma deslumbrante invasão de competências por parte da Sala Eleitoral. A LOTSJ e a LOPRE definem com precisão milimétrica os domínios do CNE e da Sala Eleitoral. Em nenhum canto dessas normas se encontra a autorização para que a Sala Eleitoral interfira no processo de contagem, totalização ou proclamação, território exclusivo do CNE. A interferência da Sala Eleitoral nessas fases, mais do que uma intervenção, é uma usurpação de funções que arrasa com a separação de poderes e a autonomia do CNE.

E assim, em uma reviravolta digna do melhor teatro do absurdo, a Sala Eleitoral embarca em uma atuação sem roteiro ao aceitar a solicitação do presidente "eleito" sob representação da Procuradoria Geral da República e se envolver totalmente na usurpação de funções do CNE em relação aos resultados eleitorais.

Apesar de o CNE ter lançado um boletim parcial em 2 de agosto, ainda não concluiu seu trabalho conforme exigido pela LOPRE, que lhe concede até 30 dias para completar sua tarefa. Portanto, aceitar um recurso para certificar os resultados eleitorais antes do tempo não é mais do que uma intrépida invasão de competências por parte da Sala Eleitoral, em um ato que desafia tanto a lógica quanto a lei.

Em sua intervenção magistral, o Professor Tulio Álvarez destacou ainda três pontos cruciais:

  • O ato de votação, de caráter preparatório, culmina na eleição, uma sequência precisa que inclui a contagem, a totalização e a proclamação. Esses atos, segundo o Professor, são tão perfeitos e sucessivos que não admitem substituições. Se eles não forem seguidos na ordem, a proclamação final é nula. Em resumo: a Sala Eleitoral, por mais que se vista de gala, não pode substituir o CNE em sua jurisdição eleitoral.
  • O propósito político do recurso contencioso eleitoral é retirar da discussão a publicação dos resultados pelo CNE. Discussão que estava ressoando em várias esferas internacionais. E assim, o recurso procurou transferir essa batalha para os tribunais, transformando o debate em um magnífico desfile de diatribes que buscam desviar a atenção da anulabilidade da proclamação e da ausência de resultados publicados verificáveis.
  • O objetivo jurídico final do recurso é certificar atas. Mas a pergunta que fica no ar é: que atas pretende certificar a Sala Eleitoral, quando cabe ao CNE, o órgão supremo do Poder Eleitoral na Venezuela, realizar essa tarefa? Não é mais do que um desperdício monumental de recursos públicos e tempo, que a Sala Eleitoral se atribua a competência para conhecer um recurso inexistente, que inevitavelmente culminará em uma decisão anulável por sua flagrante ilegalidade e inconstitucionalidade.

O Professor Álvarez sublinha com perspicácia que, de acordo com a LOPRE, a custódia do material eleitoral está em mãos das Forças Armadas Nacionais e só é devolvido ao CNE em casos de impugnação formal, algo que não ocorreu neste caso. Ao solicitar a Sala Eleitoral ao CNE um material que, por lei, não estava sob sua custódia, mas sob a vigilância das Forças Armadas, e ao proceder o CNE à entrega desse material, revela-se uma flagrante usurpação de funções da Sala Eleitoral e do CNE pelas Forças Armadas da República.

Isso, por supuesto, se supusermos que o material entregue corresponde efetivamente ao das eleições de 28 de julho; caso contrário, estaríamos diante de implicações legais ainda mais preocupantes, que por hoje deixamos à imaginação.

Além disso, a autora não pode deixar de destacar que a decisão da Sala Eleitoral que ordena a entrega do material eleitoral por parte do órgão errado revela um deslumbrante grau de ignorância da legislação eleitoral por parte dos magistrados, que, em sua sublime incompetência, despojaram a jurisdição eleitoral de seu prestígio.

Neste enigmático caso, o petitum do recurso, qual segredo bem guardado, não foi publicado para a devida transparência perante os cidadãos, que, como partes interessadas, ficaram na penumbra. Apenas alguns poucos afortunados, entre eles o professor Álvarez, tiveram acesso ao precioso documento.

Nem mesmo os candidatos convocados para comparecer puderam folhear tal escrito antes de serem forçados a assinar um documento legal em cadeia nacional, sem a possibilidade de revisão por parte de seus advogados. Esse detalhe, amplamente observado durante a transmissão, foi posteriormente confirmado e denunciado pelos candidatos Enrique Márquez e Antonio Ecarri, adicionando toques adicionais de dramatismo a essa tragicomédia judicial.

Após um exame minucioso do texto, o professor Álvarez revelou que não se tratou em nenhum momento de uma solicitação de impugnação do ato de proclamação. Na realidade, a solicitação concentrou-se na verificação de atas e na comprovação do suposto hackeamento proveniente da Macedônia do Norte, um escândalo que foi desmentido por diversas fontes, incluindo o próprio governo da Macedônia do Norte.

Além do exposto, o drama judicial se intensificou com uma atuação estelar em 23 de agosto de 2024, quando o Professor e ex-Magistrado do TSJ Juan Carlos Apitz, atual Decano da Faculdade de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Central da Venezuela, em uma entrevista com o jornalista César Miguel Rondón, explicou magistralmente que a sentença em questão é nula de nulidade absoluta, de acordo com o art. 138 da própria Constituição de 1999, segundo a qual toda autoridade usurpada é ineficaz, e seus atos são nulos. Enfatizando que nem a Constituição nem a LOTSJ concedem à Sala Eleitoral o poder extraordinário de verificar os resultados do CNE.

À luz dos acontecimentos, posso afirmar que a Sala Eleitoral não tem competência para tratar do recurso contencioso eleitoral. Por quê? Porque, simplesmente, não há ato a ser examinado. Primeiro, não existe um ato válido de proclamação, dado que não foram completados os processos irremplazáveis de contagem e totalização. Segundo, o material eleitoral está sob custódia das Forças Armadas Nacionais e só pode ser transferido em caso de impugnação formal, algo que aqui não ocorreu. Em resumo, qualquer tentativa da Sala Eleitoral de assumir poderes excepcionais, não previstos nem pela Constituição ou pela lei, não é mais do que uma usurpação de funções de outros Poderes Públicos independentes.

Como ato final neste drama jurídico, sinto-me obrigada a abordar o precário argumento do “Diálogo Jurisprudencial” apresentado pela Sala Eleitoral em sua sentença. Um gesto desesperado, quase cômico, em sua busca por algum lampejo de jurisprudência em todo o planeta que possa conferir uma sombra de legalidade à sua tão desejada “competência”.

Para tal fim, a Sala Eleitoral do TSJ, buscando justificar o injustificável, decidiu invocar o lendário "diálogo jurisprudencial" para demonstrar sua inusitada competência em casos como o presente. Segundo o roteiro da Sala, Brasil, México e Estados Unidos serviram como ilustres precedentes. No entanto, o que essas referências nos oferecem é um desfile de distrações, em vez de uma série de argumentos jurídicos aplicáveis.

Para entender por que esse recurso é tão frágil quanto um cenário de papelão, é necessário saber o que implica realmente o "diálogo jurisprudencial". Essa técnica, como nos ilustra Ayala Corao (2012), é uma dança delicada entre tribunais de diferentes jurisdições. Consiste em que um tribunal, ao receber jurisprudência, cita e examina sentenças de outros tribunais para enriquecer sua própria decisão, desde que a análise seja pertinente e útil (Ayala Corao, 2012: 21-23).

Por outro lado, F. Reviriego (2012) explica que o diálogo jurisprudencial pode ocorrer em contextos supranacionais, indiretos ou diretos, e pode auxiliar na interpretação dos direitos (Reviriego, 2012: 382-383).

Agora, a Sala Eleitoral tentou disfarçar sua incompetência com o exemplo do Brasil, México e Estados Unidos. Mas aqui está o truque: a Sala não conseguiu oferecer um verdadeiro diálogo jurisprudencial. Por quê? Primeiro, os fatos não são comparáveis: no nosso caso, não há ato a ser impugnado. Segundo, as jurisdições são diferentes: esses países têm tribunais eleitorais com competências integrais, enquanto na Venezuela o CNE é o órgão supremo do Poder Público Eleitoral. E, por fim, nos exemplos citados houve atas e resultados eleitorais publicados a serem impugnados, algo que nem se vislumbra aqui, dado que o CNE ainda não publicou oficialmente as atas em questão.

Em resumo, a tentativa da Sala Eleitoral de legitimar sua intervenção por meio dessa técnica é tão eficaz quanto uma cortina que não cobre o palco.

E assim, meus caros e ávidos leitores, enquanto o drama se desenrola e os segredos surgem das sombras, só nos resta perguntar quais reviravoltas nos reserva o futuro. Até lá, mantenham sua astúcia afiada e seus ouvidos bem atentos, pois esta saga ainda guarda surpresas que não tardarei em revelar. Nos encontraremos muito em breve para o segundo ato desta obra, protagonizada pela nossa ilustre autoridade judicial eleitoral venezuelana.

Atenciosamente,

Madame Robespierre